quinta-feira, 15 de abril de 2010

Eu sei, mas não devia




"Eu sei que a gente se acostuma.


Mas não devia.


A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.


E porque não tem vista logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.


E porque não olha pra fora, logo se acostuma a aceder cedo a luz.


E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.


A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.


A tomar café correndo porque está atrasado.


A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.


A comer sanduíche porque não dá para almoçar.


A sair do trabalho porque já é noite.


A cochilar no ônibus porque está cansado.


A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.


A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone.


Hoje não posso ir.


A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.


A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.


A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.


E a lutar para ganhar dinheiro com que pagar.


E a pagar mais do que as coisas valem.


E, a saber, que cada vez pagará mais.


E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma à poluição.


Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.


À luz artificial de ligeiro tremor.


Ao choque que os olhos levam na luz natural.


Às bactérias da água potável.


A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.


Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.


Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.


Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.


Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.


E se no fim de semana não há muito que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.


A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.


Acostuma-se para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.


A gente se acostuma para poupar a vida.


Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesmo".


Clarisse Lispector.



Reaprendendo-me, sempre!

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